O apóstolo entra agora no tema daqueles que professavam acreditar que Jesus era o Cristo, o Senhor. Antes, no capítulo 1, ele tinha falado da nova natureza em conexão com Deus; aqui a profissão de fé em Cristo é posta em presença da própria pedra de toque, ou seja, da realidade dos frutos produzidos por ela, em contraste com este mundo. Todos estes princípios —o valor do Nome de Cristo, a essência da lei tal como Jesus a manifestou, a lei da liberdade— são considerados para julgar a realidade da vida espiritual, ou para convencer ao professante de que não a possuía. Duas coisas são reprovadas: a consideração da aparência exterior das pessoas (V. 1-13), e a ausência de obras como prova da sinceridade da profissão (V. 14-26).
Em primeiro lugar, pois, o apóstolo censura a consideração da aparência exterior das pessoas (V. 1-4): se professa que se tem fé no Senhor Jesus (V. 1) e, não obstante, se está animado pelo espírito do mundo! O Espírito responde: Deus escolheu aos pobres para que sejam ricos na fé e herdeiros do reino (V. 5). Os professantes lhes tinham menosprezado; estes homens ricos blasfemavam o Nome de Cristo e perseguiam os cristãos (V. 6-7).
Em segundo lugar, Tiago apela ao resumo prático da lei da que Jesus tinha falado, a lei real (V. 8). Se violava a própria lei ao favorecer aos ricos (V. 9), e a lei não consentia nenhuma infração de seus mandamentos, porque estava em jogo a autoridade do legislador (V. 10-11). Se a gente menosprezar aos pobres, por certo que não ama ao próximo como a si mesmo.
Em terceiro lugar, deve-se andar como aqueles cuja responsabilidade é medida pela lei da liberdade, como aqueles que, tendo uma natureza que saboreia e gosta do que é de Deus, estão liberados de tudo o que era contrário a ele; de maneira que não podem desculpar-se se admitirem princípios que não são os de Deus mesmo. Esta participação da natureza divina introduz naturalmente o pensamento de misericórdia, mercê a qual Deus mesmo se glorifica. O homem que não mostra misericórdia se verá objeto do julgamento sem misericórdia (V. 12-13).
A segunda parte do capítulo se relaciona com este pensamento a respeito da misericórdia, pois Tiago inicia sua dissertação sobre as obras, como provas da fé, falando desta misericórdia que responde à natureza e ao caráter de Deus, atributos dos quais o verdadeiro cristão, como nascido de Deus, foi feito partícipe. A profissão de ter fé sem esta vida —cuja existência se prova por obras— não pode beneficiar a ninguém. Isto é muito singelo. Digo a profissão de ter fé, porque a epístola o diz: “Se alguém disser que tem fé” (V. 14). Eis aí a chave desta parte da epístola: diz-se ter fé, mas onde está a prova dela? Nas obras. Desta maneira as emprega o apóstolo. Um homem diz que tem fé. Mas a fé não é uma coisa que possamos ver. Por isso dizemos com razão: “me mostre sua fé” (V. 18). O que o homem requer é a evidência da fé; somente por seus frutos podemos fazer visível ante os homens a existência da fé, pois a fé em si mesmo não se vê. Mas se tiver esses frutos, então certamente tenho a raiz, sem a qual não poderia haver frutos. De modo que a fé não se mostra a outros nem pode ser reconhecida sem que medeiem as obras, mas as obras, frutos da fé, provam a existência da fé (V. 14-18).
O que segue mostra que a fé morta da que fala Tiago é a profissão de uma doutrina, possivelmente verdadeira em si mesmo. Ele supõe que se reconhecem certas verdades, pois é uma verdadeira fé a que têm os demônios quanto à unidade de Deus; eles não duvidam a respeito, mas não há nada que ligue seus corações a Deus por meio de uma nova natureza. Muito longe disso!
Mas o apóstolo confirma isto pelo caso de homens em quem a oposição com a natureza divina não é tão evidente. A fé, essa fé que reconhece somente a verdade com respeito a Cristo, está morta sem obras, quer dizer, que uma fé que não produz frutos está morta (V. 20).
Vemos (V. 16) que a fé da qual fala o apóstolo é uma profissão desprovida de realidade; o versículo 19 mostra que pode ser uma certeza, sem fingimento, de que o que se crie é verdade; mas a vida engendrada pela Palavra, vida pela qual fica estabelecida uma relação entre a alma e Deus, falta por completo. Como esta vida provém da semente incorruptível que é a Palavra, é da fé afirmar que, tendo sido engendrados Por Deus, temos uma nova vida. Esta vida atua, quer dizer, a fé atua conforme à relação com Deus na qual ela nos coloca, gerando obras que emanam naturalmente dela e que dão testemunho da fé que as produziu.
Do versículo 20 até o final do capítulo, ele apresenta uma nova prova de sua tese, fundada no último princípio que acaba de enunciar. E as provas que dá da demonstração da fé pelas obras nada têm que ver com os frutos de uma natureza amável, porque há frutos amáveis que produz a própria criatura mas que não provêm de uma vida que tenha sua origem na Palavra de Deus, mediante a qual ele nos gera. Os frutos dos que fala o apóstolo dão testemunho, por seu próprio caráter, da fé que as produziu. Abraão ofertou a seu filho (V. 21); Raabe recebeu aos mensageiros de Israel, associando-se assim ao povo de Deus quando tudo lhe opunha e separando-se de seu próprio povo pela fé (V. 25). Tudo sacrificado Por Deus, tudo abandonado por Seu povo antes de que este tivesse obtido tão somente uma vitória, e isso enquanto o mundo tinha seu pleno poder: assim são os frutos da fé.
Um se voltava a Deus e lhe acreditava da maneira mais absoluta, contra tudo o que há na natureza ou naquilo no qual a natureza pode apoiar-se; a outra reconhecia ao povo de Deus quando tudo estava contra este; mas nem um nem o outro eram o fruto de uma natureza amável ou de por si naturalmente boa, segundo o que os homens chamam boas obras. Um era um pai a ponto de dar morte a seu filho; a outra era uma mulher pecadora que traía a sua pátria. Por certo cumpriu-se a Escritura que diz que Abraão acreditou em Deus (V. 23; veja-se também Gênese 15:6). Como teria podido obrar como o fez, se não lhe tivesse acreditado? As obras puseram o selo sobre sua fé, e a fé sem obras só é, como um corpo sem alma, uma forma exterior desprovida da vida que a anima. A fé atua nas obras (pois sem ela as obras são uma nulidade, não são as de uma vida nova), e as obras completam a fé que atua nesta vida, as produzindo; porque apesar da prova, e na prova, a fé está ativa nesta nova vida. As obras de lei não têm parte alguma na vida. A lei exterior que exige não é uma vida que produz (além desta natureza divina) essas santas e amantes disposições que têm por objeto a Deus e a seu povo e para as quais nada mais tem valor.
Note que Tiago nunca diz que as obras nos justificam diante de Deus, porque Deus pode ver a fé sem suas obras. Quando está a vida, ele sabe. A fé se exerce com respeito a ele, para ele, pela confiança em sua Palavra e nele mesmo, recebendo seu testemunho através de tudo, apesar de tudo, por dentro e por fora. Esta é a fé que Deus reconhece. Mas quando se trata do homem, quando tem que dizer-se “me mostre” (V. 18), então a fé, a vida, mostram-se por meio das obras.
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